18/10/2024 às 00h48min - Atualizada em 18/10/2024 às 00h48min

Obrigado Miyazaki

Rogério Candotti | [email protected] | blogdorogerinho.wordpress.com

Depois de vários adiamentos, o co-fundador do Studio Ghibli se aposentou de vez. Na verdade, o cineasta de 83 anos de idade já desejava se aposentar logo após a estreia de Vidas ao Vento (2013) no cinema; porém, graças à nova animação vencedora do Oscar deste ano ele decidiu prolongar um pouco mais a sua carreira brilhante. Nascido em 1941 na cidade de Akebono-cho, em Tokyo, o desenhista era o segundo dos quatro filhos de Katsuji Miyazaki, diretor da Miyazaki Airplane que fabricava o leme dos caças de combate japoneses na Segunda Guerra Mundial. Assim, de forma sutil e indireta, ele homenageia o pai na figura do ídolo, Jiro Horikoshi, e a mãe, Dola, como sua esposa, Naoko Satomi: desde o terremoto em 1923, denominado o Grande Kantō, quando se apaixonaram pela primeira vez . Acontece que aquele país agrícola, dominado pela pobreza, sofreria ainda mais com a Crise Econômica de 1929, cujo engenheiro aeronáutico, amparado em Giovanni Battista Caproni, impulsionou a Terra do Sol Nascente antes de ser devastada pelos aliados, embora fosse reconstruída com a mesma rapidez e a proteção espiritual do vento que sustenta o planador daquele sonhador ambicioso no romance mais comovente de Miyazaki (Vidas ao Vento), a exemplo de A Balada de Narayama e A Montanha Mágica de Thomas Mann.
O Menino e a Garça (2023) tornou-se um epitáfio sobre a vida do coordenador daquele estúdio mágico onde conheceu os melhores amigos e, ao mesmo tempo, rivais, incluindo o autor de O Túmulo dos Vagalumes e O Conto da Princesa Kaguya, Isao Takahata, que faleceu em 2018. Além disso, o nosso querido diretor faz profundas reflexões sobre a morte conforme ela se aproxima cada vez mais. A trama acontece durante a Guerra do Pacífico, em Tóquio, onde Mahito Maki perdeu a mãe num incêndio, e o pai, dono de uma fábrica de munições aéreas, logo se casa com a irmã dela, Natsuko: dona de uma propriedade rural afastada da guerra para onde se mudam quando aquele menino de 12 anos se encontra com uma garça irritante que o leva até a torre misteriosa do fantasma do seu tio trisavô.
Rei Totoro é o mascote do Studio Ghibli e protagonista da animação Meu Amigo Totoro (1988). Dessa forma, aquele urso de bigodes de gato e unhas de bicho-preguiça faz parte do folclore japonês, vivendo debaixo da Árvore da Vida, semeada pelos próprios espíritos daquela floresta, incluindo os de fuligem que apenas as crianças enxergam também. A jornada das irmãs de 4 e 10 anos àquele País de Maravilhas assemelha-se á da família do animador que se mudou de Tokyo em 1944 para Utsunomiya; e no ano seguinte: Kanuma, visando escapar de um terrível bombardeio que atingiu a região; cujo trauma ficou marcado nos olhares aflitos de Mei e Satsuki, amparadas apenas pelo pai dedicado enquanto mãe se recuperava de uma tuberculose vertebral no hospital, vindo a falecer por outros motivos em 1983, aos 71 anos de idade.
Se A Viagem de Chihiro (2001) revela um profundo discurso sobre a água e seus simbolismos sagrados, Princesa Mononoke faz um trabalho centrado nas forças da terra; O Castelo Animado condensa no fogo a narrativa da obra e seus desdobramentos; enquanto Nausicaä do Vale do Vento, articula no ar relações surpreendentes: tanto físicas quanto espirituais. Na trama, a heroína de apenas 10 anos de idade começa como uma menina mimada até habitar o Rio das Almas por quatro dias e três noites; de onde sai confiante, caminhando com as próprias pernas sem olhar pra trás, até deixar o túnel que divide o mundo dos vivos com o mundo dos mortos. Ocorre que o dever irresistível de salvar aqueles pais gulosos obrigaram-na a trabalhar pesado, cerca de 16 horas por dia na antiga casa de banho Dogo Omsen Honkan, construída, na verdade, em 1894 durante o período Meiji (1868 – 1912), cujo contrato leonino com a bruxa má, Yubaba, é semelhante ao do Grande Irmão de George Orwell com o proletariado daquele país fictício em razão da nova linguagem imposta pelo ditador totalitário. Apesar de não ser gananciosa, para recuperar a identidade e conquistar sua liberdade,  Chihiro teve de descer ao submundo do pântano pelo trem que pairava sob a face das águas onde finalmente pudemos ouvir o silêncio da natureza orgânica ao lado da bruxa boa, Zeniba, em contraste com a agitação da prostituída Casa de Banho do centro. Se se perdessem todas as animações e só se salvassem as de Miyazaki nada estaria perdido. Todas as animações do Studio Ghibli estão disponíveis na Netflix.

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