14/09/2023 às 23h25min - Atualizada em 14/09/2023 às 23h25min

Solidão

Rogério Candotti | [email protected] | blogdorogerinho.wordpress.com

Nunca nos permitimos o pecado de perder o controle do tempo; porque se vive e morre pelo relógio (Chuck Noland). Tom Hanks foi quem teve a ideia de produzir Náufrago (2000), disponível no Telecine, ao lado do mesmo diretor de Forrest Gump, Robert Zemeckis. O ator queria reinventar o conceito de “preso numa ilha deserta,” associado apenas a Robinson Crusoe ou A Ilha dos Birutas (1963), sem os cinco elementos necessários para viver: comida, água, abrigo, fogo e companheirismo; cujo roteiro demorou 6 anos para ser finalizado, sendo reescrito 125 vezes por William Broyles ao se isolar por alguns meses num campo de sobrevivência no México. Tom teve de engordar mais de 20 kg ao encarnar o executivo de operações da FedEx e emagrecer tudo de novo para se transformar no primata sem pátria que redescobriu o fogo e o amor ao próximo a partir da companhia da bola de vôlei Wilson Cataway. O homem de pouca fé com todo o tempo do mundo, dependia agora da maré divina para lhe trazer encomendas fundamentais via FedEx: como um papel de divórcio para alimentar o fogo; fitas vhs para amarrar a jangada; uma bola amiga do mesmo sangue, e patins de gelo para abrir cocos e apontar lanças. Após cogitar suicídio, a maré deu fim áquele teste supremo de paciência de jó, trazendo-lhe um pedaço de banheiro químico como vela em sua jangada após quatro anos intermináveis: as asas que faltavam para transpor aquelas ondas gigantes e fugir da ilha bendita como ícaro fugiu por cima do Labirinto do Minotauro na ilha de Creta. De volta a sanidade em mar aberto, sem Wison, uma baleia o avisa da chegada do cargueiro salvador; até no mês seguinte ser finalmente recepcionado com frutos-do-mar pelos colegas, além de um novo amor à sua espera, pois Chuck já tinha aprendido a amar sem se apegar ao permitir que a ex-noiva Kelly (Helen Hunt) seguisse a vida após constituir família na sua ausência; afinal o tempo não pára.
Enquanto isso, Piscine Molitor admirava as principais religiões: o cristianismo, islamismo, judaísmo e o budismo, sem se opor às demais. O garoto era movido pela fé ao invés da doutrina  — sobretudo ao cristianismo e o hinduísmo da mãe com milhões de deuses, misturados ao ateísmo do pai racionalista. Porém, para saciar essa sede de conhecimento espiritual apenas a Água Viva de Jesus resolveu: conectada à mãe-natureza, onde peixes se oferecem para alimentá-lo na hora mais escura, análogo ao Maná dos hebreus. “Sedento” era o nome do tigre-de-bengala que o acompanhou em toda sua jornada: As Aventuras de Pi (2012), mantendo-o vivo e atento por 227 dias (22 ÷ 7 = 3,14 π) até a Ilha Misteriosa de Júlio Verne — sequência de 20.000 Léguas Submarinas — ou Ilha Carnívora, obrigando-o a focar no problema e na solução sem se deprimir. Após o naufrágio, o seu instinto selvagem é apelidado de Richard Parker em homenagem ao personagem de Edgar Allan Poe e àquele do naufrágio real do Mignonette, ambos comidos pelos sobreviventes. O diretor Ang Lee contratou Steven Callahan como “consultor náutico" que em 1982 sobreviveu 76 dias num bote salva-vidas à deriva no Atlântico após seu veleiro afundar. A publicação homônima de Yann Martel que deu origem ao filme, foi inspirada no conto: Max e os felinos do escritor brasileiro Moacyr Scliar.
Robert Redford e Shailene Woodley na melhor atuação da sua carreira, interpretam dois náufragos — cada um em seu veleiro à deriva — sem rádio e equipamento de navegação, devido a uma forte tempestade que os deixou várias horas desacordados após rolarem pelo oceano num iate descontrolado. Com um corte profundo na cabeça até a rota de navios, ambos utilizam apenas um sextante e alguns mapas náuticos, embora no caso de homem idoso o salvamento seja fictício e interpretativo, enquanto a jovem atingida em 12 de outubro de 1983 pelo furacão Raymond nível 4 navegue até hoje, apesar do trauma. Tami Oldham Ashcraft escreveu o livro “Red Sky in Mourning: The True Story of Love, Loss, and Survival at Sea que deu origem ao filme Vidas à Deriva (2018), na HBO Max, cuja voz do noivo Richard Sharp em seus pensamentos foi o alento necessário àquela vegana de pele surrada de sol a pino para caçar e se alimentar por 47 dias, da Califórnia até o Havaí no luxuoso iate Trintella 44, levado pela maré apenas.
Até o Fim (2013) foi escrito e dirigido por JC Chandor após Margin Call sobre a crise das hipotecas subprime de 2008. De alguma forma seu segundo longa-metragem disponível na HBO Max provoca sentimentos contrários e sinestésicos, sendo contemplativo na ausência de diálogos e trilha sonora, atribuindo calma com uma certa urgência; liberdade àquele personagem sem nome, interpretado por Robert Redford, embora preso à vontade de viver a qualquer custo. Uma das obras cinematográficas que melhor define a solidão: traz alívio ao invés de angústia.

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