18/08/2023 às 01h03min - Atualizada em 18/08/2023 às 01h03min

Muito Além de A Pequena Sereia

Rogério Candotti | [email protected] | blogdorogerinho.wordpress.com

No conto original homônimo do dinamarquês Hans Christian Andersen (1805 – 1875) o Rei dos Mares foi substituído pela sua mãe na orientação das cinco princesas, ansiosas para conhecer a superfície terrestre onde “peixes voam nas árvores e sabem cantar tão docemente”. Aquela lua pálida, distorcida no céu, era uma cópia mal feita do mundo fantástico contado pela avó a Pequena Sereia de “pele clara e delicada como uma pétala de rosa e os olhos azuis como um lago profundo”.  As sereias duram 300 anos até virar espuma do mar, caso não se casem com um humano interessado em compartilhar sua alma imortal com ela. Esse era o objetivo da caçula ao completar 15 anos, cujas boas ações elevaram-na do submundo ao reino celestial, transformando-a num espírito do ar com a missão de amparar os humanos enquanto não adquirisse uma alma individual antes de encarnar pela primeira vez num corpo físico na Terra.
Se no conto a heroína troca sua voz pelos pés que sangravam ao tocar no chão, o live-action de 2023, disponível no Disney Plus, é sem alma e sem graça; governado no fundo do mar escuro e sem vida por um Rei Tritão (Javier Bardem) insosso diante das rebeldias da filha caçula. Além disso, a letra das canções não encaixam no roteiro arrastado em que os pets sem expressão para contar piadas não cativam o público, apesar da vilania de Úrsula (Melissa McCarthy) e da sintonia do casal real Eric (Jonah Hauer-King) e Ariel (Halle Bailey) roubarem a cena, sobretudo pela voz de veludo daquela cantora promissora.
Em Ponyo — Uma Amizade que Veio do Mar (2008), na Netflix, Hayao Miyazaki enfatiza os aspectos espirituais do conto dinamarquês; da lenda japonesa entre o pescador Urashima Taro e uma tartaruga; da história do romancista Santō Kyōden “Baika hyōretsu”, na qual a jovem Monohana é assassinada e sua alma fica presa no corpo de um peixinho dourado; do clássico de Júlio Verne 20 mil léguas submarinas, e muitos outros. Brunhilde é a xará de nascimento da valquíria lendária na ópera de Richard Wagner O Anel do Nibelungo, antes de ser chamada de Ponyo por Sōsuke, cujo amor verdadeiro entre eles impediu aquele peixinho dourado, transformado numa criancinha pura de coração, virar espuma do mar. Gran Mamare é a Deusa da Misericórdia budista, cuja aparência foi baseada na pintura Ophelia de Hamlet, em 1851, enquanto o tsunami provocado por Ponyo foi baseado no folclore japonês em que o bagre gigante Namazu ao mover sua cauda faz tremer todo o planeta.
Segundo o espírito Ângelo Inácio no livro Aruanda, psicografado por Robson Pinheiro, os seres elementais têm uma espécie de consciência instintiva a caminho da humanização que apenas Deus conhece. Os silfos correspondem às forças criadoras do ar e as ninfas como às ondinas estão associadas ao orixá Oxum (rainha da água doce), enquanto sereias e tritões vivem nas profundezas das águas salgadas ajudando na limpeza de ambientes; da aura de pessoas e regiões astrais poluídas por espíritos do mal. Já as fadas — seres de transição entre os elementos, terra e ar — auxiliam os espíritos superiores na elaboração de ambientes extrafísicos com aparências belas e paradisíacas.
Sirena já foi homenageada por Virgílio, Heródoto, Camões, Olavo Bilac e Monteiro Lobato, mas ficou marcada mesmo nos versos de Homero como uma mulher-pássaro. A melhor forma de derrotá-la é cantando melhor do que ela, com a voz da alma humana. Ulisses ao impor princípios e valores, amarrado ao mastro vertical (o mesmo simbolismo do fogo), resistiu bravamente àquelas vozes encantadoras que o atraiam para as águas materialistas, enquanto os marinheiros — aspectos dele mesmo — tapavam o ouvido com cera. A sereia indígena brasileira é uma mistura das mouras encantadas, Ondina, Loreley, Mãe d'Água e Iemanjá com o Ipupiara, Cobra Grande e o próprio Boto; até mesmo o anfíbio humanóide em A Forma da Água de Guillermo del Toro. 
Iara nasceu na Tribo dos Bororos — Clã dos Araés — à beira do Rio Araguaia (Rio das Araras Vermelhas) no final do século XVII. A exímia caçadora, tecelã e pintora tirou a vida dos dois irmãos ciumentos que tentaram matá-la primeiro, sendo afogada a mando do cacique da aldeia no encontro dos rios Negro e Solimões, quando foi transformada pelos peixes e o poder da lua cheia na deusa tupi-guarani dos rios amazônicos e seus afluentes. “A Lenda da Iara, a deusa das águas, traduz a relação do caboclo com o mundo aquático da Amazônia, cuja paisagem ganhou do poeta baré Thiago de Mello o nome de Pátria das Águas. Essa interação permanente do amazônida com as águas gerou a chamada civilização ribeirinha, na qual os rios, lagos, igarapés e igapós são fontes da vida, da morte e do imaginário regional”.

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