21/04/2023 às 01h04min - Atualizada em 21/04/2023 às 01h04min

​Bon Gourmet Macabro

Rogério Candotti | [email protected] | blogdorogerinho.wordpress.com

Monty Python — O Sentido da Vida (1983) é apresentado por peixes que inspiraram aqueles do saudoso programa Glub Glub, exibido pela TV Cultura nos anos 1990 e 2000. Foram 10 temporadas com 600 episódios. A comédia ácida de humor negro, disponível no Star Plus, faz uma autocrítica aos principais estabelecimentos britânicos que exercem controle hipnotizante aos funcionários, a quem os obedece, cegamente; seja na escola, na política, na religião, no exército, no sistema de saúde público-privado e na gastronomia: representada por um restaurante havaiano onde um casal americano vai jantar, embora o garçom ofereça-lhes uma conversa sobre o sentido da vida ao invés do menu tradicional, como no restaurante francês mais caro do país, cujo melhor cliente, pesando mais de meia tonelada, pede todos os pratos do cardápio; vomita-os sobre os outros fregueses, mas é tratado com cordialidade pelos garçons, interessados apenas no lucro. Em outra situação: Grim Reaper, a personificação da morte europeia, entra numa casa isolada e convence os anfitriões e os convidados do jantar a acompanhá-lo até o Paraíso, no mesmo restaurante havaiano, já que todos estão mortos.
O Homem Cordial brasileiro, ao contrário do japonês (religiosamente obediente), “equivale a um disfarce que permitirá a cada qual preservar inatas suas sensibilidades e suas emoções” (Sérgio Buarque de Holanda: Raízes do Brasil). A diretora nerd Gabriela Amaral Almeida, fã do cinema pulp, graças aos ídolos: John Carpenter e Mario Bava, inova em  seu primeiro longa: O Animal Cordial (2017), disponível na Netflix e no Globoplay, cujo título faz referência tanto a Hobbes quanto a Sérgio Buarque de Holanda, pois, o ser humano encontra-se muito mais perto do animal do que do anjo. Ambientado num requintado restaurante decadente em São Paulo onde os funcionários invejam a condição financeira dos clientes endinheirados: Bruno (Jiddu Pinheiro) e Verônica (Camila Morgado), uma vez que os mesmos ostentam demasiadamente seus pertences, debochando da vida minimalista daqueles desafortunados. Contudo, no final do expediente estressante, bandidos invadem o local, nivelando a todos por baixo. Ocorre que na ânsia de afugentá-los sem ter prejuízo algum, o proprietário Inácio (Murilo Benício), nos moldes de Taxi Driver, acaba tendo “Um Dia de Fúria”, vítima da Síndrome de Burnout (combustão) ou Síndrome do Esgotamento Profissional, mas a garçonete Sara (Luciana Paes), aproveita aquela oportunidade caótica para substituir, visceralmente, o patrão arrogante. Como diria o coringa: “basta um dia ruim para reduzir o mais são dos homens a um lunático”.
Triângulo da Tristeza (2022), disponível no Prime Video, é o nome da região entre as sobrancelhas onde se franze quando estamos preocupados, surgindo as famosas rugas de expressão, motivo pelo qual o modelo Carl (Harris Dickinson) foi dispensado de um trabalho, cuja namorada e influenciadora digital Yaya (Charlbi Dean) — muito mais bem sucedida nas passarelas — o convida para um luxuoso cruzeiro, gratuitamente. Entre os convidados, aparecem o oligarca russo Dimitry, a sua esposa Vera e o casal de idosos Clementine e Winston: fabricantes de armas. Vera, cujo marido vende esterco, obriga os tripulantes e toda a equipe da cozinha a nadar, apesar do aviso do chef de que a comida vai estragar durante a tempestade vindoura, provocando vômitos e diarréia nos passageiros, enquanto os dois magnatas discutem as diferenças entre o capitalismo e o socialismo longe do capitão bêbado (Woody Harrelson), refugiado na sua cabine. Com o iate fragilizado no dia seguinte, piratas o atacam, mas os passageiros já mencionados e a chefe das faxineiras, Abigail (Dolly de Leon), fogem até uma ilha estranha. No entanto, a hispânica de vida autotélica é a única que sabe pescar, fazer fogueira e cozinhar, por isso, ela se transforma numa mulher opressora e hedonista após inverter aquela pirâmide social estabelecida no transatlântico, abrigando Carl a dormir ao seu lado numa barraca confortável,  cheia de comida, enquanto os demais convivem humildemente a céu aberto em harmonia. No meio da ignorância, quem sabe pouco domina. Charlbi Dean, faleceu em agosto do ano passado aos 32 anos ao contrair uma sépis bacteriana.
A ideia de O Menu (2022) disponível no Star Plus, partiu do co-roteirista Will Tracy (Sucession) após uma visita ao Cornelius Seafood, numa ilha privada da Noruega, equivalente ao restaurante isolado de Julian Slowik (Ralph Fiennes), em cujo bioma exige-se de funcionários artificiais, uma jornada abusiva de 20 horas por dia, manipulando-os psicofisicamente, da mesma forma que as vítimas de mente fraca da seita localizada no deserto de Oregon: Wild Wild Country, na Netflix. Os 10 pratos diferenciados que aparecem em tela, foram criados pela renomada chef francesa Dominique Crenn, dona do luxuoso Atelier Crenn, a única mulher dos EUA a conquistar as três estrelas do Guia Michelin. O tema exige suspensão de credulidade ao introduzir 12 convidados àquela ceia privilegiada. Entre eles: um puxa-saco do seu ídolo populista (Nicholas Hoult), uma garota de programa (Anya Taylor-Joy), um ator decadente, uma crítica gastronômica; magnatas e investidores, e a mãe alcoólatra do anfitrião rigoroso com neurose meticulosa, embora o obstinado respeite a arte como um todo, sobretudo o seu processo criativo, contrariando àqueles que a consomem por bel-prazer. A única capaz de quebrar aquela hierarquia repressiva, cujo sistema despersonaliza o indivíduo, foi a prostituta espontânea que mal tocou naquela comida sem alma, provocando a memória afetiva do chef, análogo ao crítico impiedoso de Ratatouille ao voltar a ser criança como o Cidadão Kane em seu trenó

Link
Notícias Relacionadas »
Comentários »
Comentar

*Ao utilizar o sistema de comentários você está de acordo com a POLÍTICA DE PRIVACIDADE do site https://gazetadepinheiros.com.br/.