18/05/2023 às 14h17min - Atualizada em 19/05/2023 às 00h00min

Saúde mental e liberdade: reflexões sobre o Dia Nacional da Luta Antimanicomial 

*Neiva Silvana Hack 

SALA DA NOTÍCIA Valquiria Cristina da Silva Marchiori
Rodrigo Leal

Hoje é o Dia Nacional da Luta Antimanicomial (18) e temos, certamente, que refletir sobre o motivo de se estabelecer um conjunto de pautas e ações contrárias aos manicômios, como também questionar se essas estruturas históricas ainda se fazem presentes na cena atual. 

O modelo manicomial foi uma das principais estratégias no atendimento dos problemas de saúde mental no Brasil dos séculos XIX e XX. Foi questionado a partir da década de 1970, sob a influência do olhar crítico e dos novos métodos propostos pelo psiquiatra italiano Franco Basaglia, levando à consolidação do Movimento da Reforma Psiquiátrica na década de 1980.  

O que havia de tão ruim nessas instituições? Uma das principais características desse modelo, que hoje pode ser reconhecida como uma afronta aos direitos humanos, era sua proposta de tratamento a partir de um pressuposto de isolamento, e podemos melhor dizer, de privação de liberdade. O paciente que adentrava em um hospital psiquiátrico no modelo manicomial não tinha previsão de alta, mas podia passar a viver ali até seus últimos dias.  

Tal formato criava oportunidade para tantas outras agressões. Registro muito bem feito dessa história foi produzido pela jornalista Daniela Arbex, em seu livro (2013) e homônimo filme documentário (2016) Holocausto Brasileiro. Genocídio: 60 mil mortos no maior hospício do Brasil. O trabalho compreendeu a história do Centro Hospitalar Psiquiátrico de Barbacena, inaugurado em 1903, bem como de seus pacientes. Seu levantamento, que coaduna com tantas outras pesquisas sobre o tema, evidenciou o internamento sem o devido diagnóstico, maus tratos físicos e negligências extremas, em que a fome era uma das principais manifestações, implicando na morte de muitos de seus pacientes. 

O modelo manicomial brasileiro tem origens nas práticas europeias que ao longo dos séculos XVII, XVIII e XIX criminalizavam e puniam a pobreza e a loucura, por meio de estruturas denominadas de hospitais, mas que praticavam antes a punição do que ações curativas. O que se praticava, porém, era o isolamento daqueles que colocavam em risco costumes e interesses particulares ou legitimados socialmente à época.  

Mas isso tudo está no passado... não está? Nem tanto! A mudança é um processo e ainda estamos nele. Com o avanço e consolidação do Sistema Único de Saúde (SUS) no Brasil, desde 1990, e principalmente com a aprovação da Lei nº 10.216/2001, que ficou conhecida como a Lei da Reforma Psiquiátrica, o modelo manicomial foi substituído por uma nova forma de atendimento, pautada nos direitos dos pacientes.  

Foram assim instituídos os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) e reordenados os serviços e leitos psiquiátricos em todo o país. Assim, se deu origem à Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), que compreende um conjunto de diferentes equipamentos de saúde, estratégias e equipes multidisciplinares. Premissa fundamental no novo modelo é o atendimento comunitário, sem internação; mas quando essa é imprescindível, contempla um plano de atenção e tratamento que converge para o retorno ao convívio familiar e comunitário. Logo, a saúde mental passa a ser tratada como os demais casos de saúde geral.  

Porém, ainda há manifestações sociais e políticas que flertam com o retorno ao modelo antigo. Ainda há quem defenda o isolamento permanente de quem sofre com transtornos mentais e especialmente de quem se encontra em dependência de substâncias psicoativas. O tema é demasiado complexo, mas repaginar um modelo que já se mostrou abusivo seria intentar contra a dignidade humana e os avanços em saúde pública.  

Basta lembrar das vistorias realizadas em 2018 pelo Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT) em 40 hospitais psiquiátricos brasileiros, o que equivale a cerca de um terço da rede total, evidenciando a incidência de explorações e tratamentos cruéis e degradantes aos pacientes. Evidentemente, o modelo atual tem suas fragilidade e limites. Contudo, na opção entre o modelo comunitário e o modelo manicomial, o que está em disputa é o direito à liberdade, uma conquista civilizatória que só é efetiva, se universal.  

Fica claro que a luta antimanicomial, evidenciada no dia 18 de maio, precisa resistir e se fortalecer para que se produzam avanços no modelo atual e para que sejam impedidos retrocessos. Também se faz necessária a efetividade na implantação da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), em todo o território nacional, com ampla cobertura, como também com estruturas e equipes suficientes e qualificadas. A luta antimanicomial é destacadamente uma luta pela liberdade e pela garantia dos direitos de quaisquer pacientes, no âmbito da saúde mental.  

*Neiva Silvana Hack é Mestre em Tecnologia em Saúde e Professora, pesquisadora da Escola Superior de Saúde Única do Centro Universitário Internacional Uninter 

 


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